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Futebol Brasileiro

Sobrevivendo FC: o drama de quem depende da bola rolando para colocar comida em casa

Paralisação do futebol afetou comerciantes, ambulantes e profissionais liberais que trabalham no entorno dos estádios pelo Brasil
 

O terceiro episódio da série retrata o drama de quem depende da bola rolando para colocar comida em casa
O terceiro episódio da série retrata o drama de quem depende da bola rolando para colocar comida em casa

Por Monique Danello e Rodrigo Fragoso

A paralisação do futebol mexe com elencos, comissões técnicas e funcionários dos clubes, mas o impacto não aparece só dentro de centros de treinamentos ou das quatro linhas dos campos pelo Brasil. Há quem dependa da fome ou da sede do torcedor durante as partidas para encher a geladeira. Há quem ajude na busca de uma vaga para os atrasados de sempre. Há quem espere o torcedor antes e depois, fora dos estádios, para servir uma boa cerveja e um bom petisco. E algumas dessas histórias você vai conhecer aqui, torcedor. Enquanto você não volta ao estádio, eles precisam dar um jeito de sobreviver.

De especialidade do bar ao sustento do lar: as fogazzas do Derlei

A primeira quadra da Rua Caraibas, em Perdizes, bairro da zona oeste de São Paulo, tem verde e branco por todos os cantos. Situada exatamente em frente ao portão de entrada do clube da Sociedade Esportiva Palmeiras e também do Portão B do Allianz Parque, milhares de torcedores começam e terminam o dia por lá. Pernil, cachorro-quente, calabresa, cerveja, refrigerante, churrasquinho, hamburguer e tudo que faz parte de um dia de jogo está ali presente. No número 25, quase na esquina da rua, há uma portinha. Lá está o Porcoletti Bar.

Foto: Instagram @porcolettibar
Porta de entrada do Porcoletti


Ao passar da pequena entrada não é preciso dar nem três passos para alcançar o balcão e fazer um pedido, percebendo logo os inúmeros adesivos do Palmeiras colados nas paredes pintadas, claro, de verde e branco. Além do balcão, o tamanho é suficiente para abrigar uma geladeira e um forno. Com mesinhas colocadas na rua, muitos torcedores ficam ali por horas, antes e depois dos jogos em casa. E quando o time está longe do Allianz Parque, vários deles se reúnem em frente ao Porcoletti, pois uma televisão é virada para fora do bar, fazendo da calçada uma arquibancada visitante.

Foto: Instagram @Porcolettibar
Torcedores se reúnem em frente ao Porcoletti Bar para acompanhar o Palmeiras

O dia a dia é bem complicado, bem devagar. O que mantém mesmo é o estádio.

"Muita gente acha ali um local movimentado por conta dos dias de jogos, mas é muito residencial. Não tem empresas para fazer happy-hour com 30 pessoas em uma noite, por exemplo. O forte é o Palmeiras e os shows no Allianz Parque. E você ainda tem dois shoppings para concorrer, então precisa fazer algo diferente", conta Wanderlei Laurino, conhecido na rua como Derlei, funcionário responsável pela especialidade do bar: a fogazza caseira. "O dia a dia é bem complicado, bem devagar. O que mantém mesmo é o estádio".


Sem jogos há quase três meses, as festas semanais se esvaziaram e muitos estão acumulando dívidas. A paralisação aconteceu às vésperas de uma semana que prometia muito para todos os comerciantes da Rua Caraibas. "A gente teria um Palmeiras e Corinthians em Itaquera, que sempre gera muito movimento na rua, além de um jogo de Libertadores no meio de semana. A pandemia pegou todo mundo ali em cheio", lamenta Derlei.

Para complementar sua renda, Derlei está fazendo suas tradicionais fogazzas em casa para entrega ou retirada. De acordo com ele, cerca de 100 fogazzas foram vendidas até agora e ainda assim, sem o auxílio do governo, seria difícil se manter durante a crise. Mesmo com uma possível volta do futebol, a preocupação segue grande: "Alguns lugares têm um espaço físico e podem abrir com distanciamento entre mesas. Nós não temos isso. Viramos a TV para a rua e não vai poder ter aglomeração. Nossa situação é complicada".

Foto: Arquivo Pessoal Derlei
As fogazzas que Derlei vendia no Porcoletti agora são produzidas em casa

Muita gente não vai aguentar, não vai conseguir se segurar. Aquela rua não vai ser mais a mesma.

Amigo dos sócios do Porcoletti e também de muitos outros comerciantes na rua, Derlei teme pelo futuro de vários estabelecimentos queridos pelo torcedor na Caraibas. "Muita gente não vai aguentar, não vai conseguir se segurar. Aquela rua não vai ser mais a mesma", lastima Derlei. E com razão. Ela já não é a mais a mesma. "O Sin Burger já fechou", conta entristecido.

Apita a crise, fim de jogo para o Sin Burger

Algumas casas para a frente, do outro lado da rua, o Sin Burger era outro ponto de encontro para vários torcedores do Palmeiras que trocavam a pizza, o salgado, o pernil ou a fogazza por um bom hamburguer. Giuliano Lenti, um dos sócios do Sin Burger, fechou as portas durante a crise. "Mesmo com delivery, o faturamente na região é muito baixo. Sem o estádio funcionando e com futebol parado, fica inviável", explica Lenti.

Foto: Instagram @sinburger
O Sin Burger servia torcedores palmeirenses desde o final de 2018

A hamburgueria abriu de setembro a dezembro de 2018 apenas em dias de jogos do Palmeiras. A partir de janeiro de 2019, houve a certeza de que era possível ampliar os dias e horários de funcionamento, ao menos até março desse ano. "Desde março não pagamos o aluguel e não alcançamos um acordo com o proprietário nesse período sem receitas, então conversei com meu sócio e achamos melhor encerrar para não nos atolarmos em dívidas".

Foto: Instagram @sinburger
O inventário do Sin Burger foi feito e está sendo vendido


Mesas, cadeiras, televisão e grande parte do inventário da hamburgueria foi vendida antes mesmo da entrega do imóvel, que aconteceu no primeiro dia de junho. "A maior parte das coisas já foi vendida, mas ainda faltam algumas que guardei na casa de um amigo meu que tem espaço. Precisamos vender. Nós saímos do negócio, mas as dívidas ficaram com a gente". Dívidas que também se acumulam do outro lado da cidade, no Bar da Família Oliveira, pertinho da Arena Corinthians.

Futebol parado, família crescendo e faturamento zerado

Com o sonho de ser segurança, José Oliveira deixou Fortaleza para trás na virada do ano de 1993 para 1994 e partiu para São Paulo. Recebido por primos são-paulinos, ele assumiu o Tricolor como seu clube de coração no momento em que o clube dominava o mundo. Ganhou camisa, ganhou bandeira, mas curiosamente nunca foi ao Morumbi e nem se sentiu ligado ao Tricolor. Talvez fosse o destino. Depois de passar por vários empregos, em 2011 Oliveira encontrou na zona leste um lugar para abrir seu próprio negócio, pertinho de um terreno ainda sem destino. Mal sabia ele que próximo de seu bar seria construída a Arena Corinthians.

Foto: Arquivo pessoal José Oliveira
José Oliveira tem o Bar Família Oliveira como sustento da sua casa

Dividido em duas portas, o espaço é pequeno, mas suficiente para comportar cinco grandes geladeiras que praticamente não ficam fechadas em dias de jogo. Na calçada, corintianos pouco utilizam as poucas mesas que Oliveira disponibiliza para apreciarem o tradicional cuscuz do bar. Partindo do bar, em menos de 10 minutos o torcedor já está dentro da Arena Corinthians. A proximidade geográfica com as obras do estádio gerou receita, faturamento. E a proximidade com o torcedor, depois da inauguração, gerou carinho, laços e tirou a cor vermelha do coração que um dia, talvez, tenha sido tricolor.

Google Street View
Em dias de jogo, a calçada ganha mesas, cadeiras e lota de torcedores corintianos

"O estádio mudou a minha vida", diz Oliveira. "Quando começaram a construir o estádio, os pedreiros vinham comer aqui, falavam das obras. Era o começo de tudo aquilo". O começo da mudança do faturamento de Oliveira e também o começo de uma relação entre o Corinthians e seu coração, deixando o São Paulo para trás sem nem mesmo saber como é o Morumbi. "Os torcedores me deram tudo que eu tenho hoje. Já me levaram ao estádio três vezes. É o time do povo. É o meu coringão. Que São Paulo o que!", conta em meio a boas risadas, que não são tão presentes desde que o futebol foi paralisado.

A gente está precisando do Corinthians de novo.

Nas primeiras três semanas de quarentena, o Bar da Família Oliveira ficou fechado. Depois de conversar com outros comerciantes locais, ele percebeu que era necessário tentar algo diferente para sobreviver em meio a uma crise sem previsão de fim. "Me inscrevi no Ifood para tentar fazer entregas de comida e bebida, só que há muitos pedidos na minha frente. Abri aqui para retirada de cerveja, refrigerante, mas é muito fraco". Três comércios de amigos da região já não resistiram. Aquilo que transformou positivamente a vida de Oliveira, que durante a pandemia se tornou avô de primeira viagem e pai de terceira viagem, precisa voltar. "A gente está precisando do Corinthians de novo".

Foto: Lucas Cavalcante
Há dias em que é preciso invadir a rua, já que a calçada não dá conta dos clientes corintianos de Oliveira

Sem jogos, sem carros e sem dinheiro, mas com amigos que formam "grande família"

De norte a sul, de leste a oeste, de Itaquera ao Morumbi, dos comerciantes aos flanelinhas. "Faz 21 anos que eu cuido de carros em dias de jogos do São Paulo", conta Claudio. Sem oportunidades, ele passou a fazer a segurança noturna de uma mansão nos arredores do estádio aos 19 anos. A oportunidade de conseguir um dinheiro a mais em dias de jogos, com a autorização do dono da casa, se tornou grande parte do sustento da família. "Não tenho com o que trabalhar. O mercado não tem vaga pra mim", conta o flanelinha de 40 anos.

Foto: Arquivo pessoal de Claudio
Durante a Copa América de 2019, amigos de Claudio (último da direita) marcaram presença no Morumbi

O Morumbi sempre me ajudou a colocar comida em casa.

Para colocar comida em casa, Claudio e sua família já trabalharam como ambulantes vendendo cerveja e hot-dog em vários estádios de São Paulo, até mesmo no antigo Palestra Itália. No entanto, foi no Morumbi que ele criou suas raízes. "O Morumbi sempre foi 80% da minha renda. Todos os clubes jogavam lá alguns anos atrás, então era jogo sábado, domingo, quarta e quinta-feira. O Morumbi sempre me ajudou a colocar comida em casa, mas agora estou com muitas dificuldades".

Guardando carros em jogos do São Paulo, Claudio fez mais do que dinheiro. Fez algumas importantes amizades para aguentar esse difícil período. "Tem pessoas que param comigo há 18 anos, então viram uma família. Quando chegam, brincam falando 'se vira pra arrumar uma vaga, preciso ver meu jogo' e são alguns desses amigos que estão me ajudando a pagar aluguel e arrumando cestas básicas para a minha família", conta agradecido o homem que mora com a atual esposa, um filho seu e mais dois filhos da companheira.

Sem estudo ou experiência profissional, o mercado se fecha ainda mais para pessoas como Claudio, que encontra nas ruas uma forma de sustentar sua família. "Estou tentando receber o auxílio do governo, mas sem a renda, sem poder ir trabalhar, só os amigos têm me ajudado mesmo. Estou esperando muito que tudo isso acabe para poder voltar à rotina". Uma rotina ainda distante, já que não só a bola precisa voltar a rolar para Claudio. Os carros também precisam voltar aos estádios.

O prejuízo da estreia de Honda no Botafogo

A quase 500km dali, na zona norte do Rio de Janeiro, o cenário é bem parecido. A “Rua das Oficinas”, onde fica uma das entradas do Estádio Nilton Santos, no bairro do Engenho de Dentro, sempre estava movimentada em dias de jogos. Os comerciantes transformavam a entrada das casas em bares e lanchonetes para atender torcedores antes e depois das partidas.

Bruno Calassara era um deles. Morando do lado do Nilton Santos, abriu as portas de casa há oito anos e começou a vender churrasco no espeto, o famoso “churrasquinho do Engenhão”. O comerciante sentiu o impacto da paralisação logo no primeiro fim de semana. A estreia de Honda com a camisa do Botafogo estava marcada para o dia 15 de março. Com mais de 20 mil ingressos vendidos, Bruno se preparou para atender o público e comprou R$2.500 em mercadorias. O jogo aconteceu, mas sem a presença de público. A decisão tomada na última hora já causou um impacto grande no orçamento da família.

Comprei R$ 2.500 de mercadoria no cartão de crédito.

“O primeiro impacto já foi desagradável, porque eles anunciaram um ou dois dias antes do jogo. A gente se programa pelo número de ingressos vendidos. Comprei R$2.500 de mercadoria no cartão de crédito. Quando veio a notícia, que teria o jogo e seria sem torcida, isso ferrou a gente. Quando não tem torcida nem vale abrir. Já tomamos um prejuízo aí, tive que tentar repassar a mercadoria, algumas coisas estamos consumindo até hoje e ficamos com uma dívida no cartão”, relatou Bruno.

Bruno (último da direita) vendia churrasquinho na porta de casa, em dias de jogos no Nilton Santos (Foto: Arquivo Pessoal)
Bruno (último da direita) vendia churrasquinho na porta de casa, em dias de jogos no Nilton Santos (Foto: Arquivo Pessoal)

Bruno tem 38 anos e mora com a esposa e a filha. Além do churrasquinho, o carioca trabalha com transporte escolar e tinha uma renda mensal que era suficiente para sustentar sua família. Com as duas atividades paralisadas e sem perspectiva de retorno, o casal conta com a ajuda de parentes e de alguns pais de crianças do transporte escolar para conseguir sobreviver.

Você se sente um inútil. Hoje vivo de ajuda. Não tenho renda nenhuma.

“Estou sobrevivendo com a boa fé de alguns pais. Eu tinha 15 crianças no transporte, das 15 metade já saiu. Das oito que ainda continuam, quatro não pagam, duas pagam a metade e apenas duas pagam o valor completo. As minhas duas fontes de renda foram as primeiras a parar e serão as últimas a voltar. Hoje estamos vivendo da misericórdia de Deus, ajuda de um, de outro, meu pai ontem fez compras para mim, as dívidas nós vamos levando, minha mãe vai ajudando, as coisas vão embolando, renda mesmo a gente não tem. A gente fica desesperado, hoje eu vivo de ajuda, não tenho renda nenhuma. É questão de sobrevivência, você se sente um inútil no meio da pandemia, não tem o que fazer, não pode fazer”, contou Bruno.

Maracanã fechado, geladeira vazia

Pertinho dali, no Maracanã, a situação de quem vivia do futebol é tão grave quanto a de Bruno. Cátia Mesquita trabalha há quatro anos em um dos bares do setor sul do estádio. Estava presente em todos os jogos recentes do Flamengo e, eventualmente, era escalada para partidas do Fluminense, quando o público ultrapassava a marca de 20 mil pessoas.
Para cada jogo que era relacionada, recebia um valor simbólico fixo e mais 3% de comissão do total vendido como caixa na fila do bar. Cátia lembra bem da última vez que trabalhou, no dia 11 de março, na vitória do Flamengo por 3x0 diante do Barcelona de Guayaquil. Na semana seguinte, completaria 39 anos e planejava uma festa, mas a pandemia não deixou.

Era a única renda que eu tinha, além do Bolsa Família.

“Meu marido saiu de casa no fim de março, moro com meus dois filhos, Bernardo (14 anos) e Yasmin (19 anos). Minha filha trabalhava vendendo plano de saúde, mas com essa pandemia fecharam as portas”, explicou.

Cátia trabalhava no bar do setor sul do Maracanã em todos os jogos do Flamengo (Foto: Arquivo Pessoal)
Cátia trabalhava no bar do setor sul do Maracanã em todos os jogos do Flamengo (Foto: Arquivo Pessoal)

Cátia mora em Engenheiro Pedreira, distrito de Japeri, no Rio de Janeiro. A família dela vive hoje apenas com os R$600 do auxílio emergencial do Governo Federal. Ela conta com a ajuda de vizinhos e com doações, como a que foi feita pelo Flamengo, distribuindo um cartão de alimentação para ambulantes que atuavam no Maracanã.

Compro hambúrguer, algo em grande quantidade que possa durar o mês inteiro.

“Tem dias que falta uma mistura, com R$600 reais eu compro uma cesta básica, pago o gás e vou tentando manter. Eu comprava carne, mas quando meu marido saiu de casa levou a geladeira, hoje não compro mais. Compro hambúrguer, algo assim que é o que eu posso comprar em grande quantidade para durar o mês inteiro. Meu vizinho guarda para mim na geladeira dele”, relatou Cátia.

Cátia segue em contato com outras colegas. que também trabalhavam no Maracanã. Elas criaram um grupo para trocar informações e tentar se ajudar. A Federação de Futebol do Rio de Janeiro (FERJ), junto com parte dos clubes, tem o desejo de retomar o Campeonato Carioca ainda no mês de junho, mas as autoridades ainda não deram um parecer sobre o tema. Mesmo com a volta do Estadual, neste primeiro momento todos os jogos serão disputados sem público. Cátia, Bruno e tantos outros profissionais que dependem do futebol seguem tentando sobreviver.

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